5 Motivos que fazem O Diário da Princesa estar muito à frente do seu tempo

Bia Crespo
9 min readOct 4, 2016

Nota: Apesar de muitas coisas ditas aqui serem crédito dos livros originais, que aliás eu li infinitas vezes quando era adolescente, nesse artigo foquei exclusivamente no filme.

  1. Clube das Mulheres

A mulherada reina tão absoluta nesse filme que, exceto pelo Joe, o motorista da família real, não tem um homem adulto entre os personagens principais. Ainda que a protagonista Mia (Anne Hathaway, wrecking ball) tenha herdado o trono do seu pai, ele não fez parte da sua vida durante a infância e faleceu um pouco antes dela completar 16 anos. Claro que ele influencia bastante na escolha da filha em seguir seus passos como governante do país através de uma carta motivacional post-mortem, mas convenhamos que são poucas as pessoas que não seguiriam as palavras inspiradoras do falecido pai que mal conheceram. Quem realmente ajuda a construir o caráter e a autoconfiança de Mia é a avó, Rainha Clarice (Julie Andrews, diva eterna), e a mãe, Helen (Caroline Goodall).

A Rainha Clarice é a formalíssima governante de Genóvia, papel que ela tem feito há cerca de 50 anos, quase desbancando a dona Beth. Ela é fria e distante no começo, mas logo vemos que ela também tem suas batalhas internas — Clarice era uma “pessoa comum” que se apaixonou por um príncipe e teve que se adaptar àquela vida cheia de pompa e circunstância e, recentemente, teve que lidar com a perda do seu único filho. Ela é uma mulher solitária que redescobre a alegria de viver com a neta, chegando à conclusão de que existem coisas mais importantes do que manter sua família no trono. Clarice e Mia fazem juntas uma jornada de descobrimento com destinos opostos: a rainha deixa de lado sua figura pública para priorizar sua vida particular, enquanto Mia aprende que às vezes você precisa abrir mão do anonimato e da sua zona de conforto pra fazer a diferença.

Helen é a âncora de Mia. Quando jovem, deixou de ir pra Genóvia porque não queria ser da família real, e ficou em São Francisco pra criar a filha como mãe solteira. Ela escondeu a verdade sobre o pai de Mia durante muitos anos não só para proteger a filha, mas também ela mesma, caso Mia tomasse a decisão contrária e resolvesse seguir os passos do pai (coisa que ela de fato acabou fazendo. Pais, vamos sempre trabalhar no espectro da verdade, por favor). Durante o filme, Helen aprende a deixar a filha traçar seu próprio destino, ainda que não tenha sido a escolha que ela teria feito. No final ela acaba namorando um dos professores da Mia e finalmente supera a vida de “mãe atarantada” que não tem tempo pra mais nada.

Mas a bússola moral da Mia definitivamente é sua melhor amiga Lilly (Heather Matarazzo). Elas quase nunca falam sobre homens. Sua única briga acontece porque Mia decide ir na festa dos populares ao invés de aparecer no talk show da Lilly, o que é um motivo totalmente aceitável pra criar climão numa amizade. Na manhã seguinte, elas tem uma conversa sincera, durante a qual Lilly manda uma das reais mais legais que um amigo pode mandar pra outro:

“Não quis dizer aquelas coisas. O monstro verde do ciúme apareceu porque você era a Miss Popularidade… E aí eu achei que estivesse perdendo minha melhor amiga, então fiquei brava e triste e chateada. Eu preciso de um ajuste de atitude. Mas a verdade é que você ser uma princesa é um milagre. Eu descobri que meu talk show tem uma audiência de 12 pessoas. Querer mudar o mundo, mas não ter nenhum poder que nem eu — isso é um pesadelo. Mas você — uau! Você tem o poder de fazer mudanças… De fazer as pessoas ouvirem.”

A Lilly é um personagem profundo, complexo, com uma agenda própria que não necessariamente depende da Mia. Elas se apoiam nas dificuldades e se ajudam a conquistar objetivos, o que é um exemplo extremamente saudável (e realista) de amizade feminina.

2. O que a princesa quer

Imagina que louco se a Mia cresceu mantendo a visão de mundo que ela tinha aos 16 anos? Genóvia deve ser o Uruguai da Europa agora. Em 2001, Mia era a pessoa mais Millenial do mundo: vegetariana por escolha própria, ela se importava com direitos humanos, desigualdade social, meio ambiente, era anti-bullying, não gostava de comprar coisas, não ligava pra maquiagem ou marcas de roupa, era péssima na aula de educação física e trocava a maior ideia com seu gato (Fat Louie, que com certeza seria o astro do Snapchat dela nos dias de hoje).

A vida inteira da Mia é super contemporânea: ela mora em São Francisco, se locomove de patinete ou de carro usado vintage, e seu grupo de amigos consiste em uma host de talk show que ninguém assiste (leia: vlogueira), um mágico amador, e o vocalista de uma banda de indie rock. Se a Mia tivesse 16 anos em 2016, ela provavelmente também seria feminista, simpatizante LGBT, e eleitora do Bernie Sanders (ou Haddad em SP e Freixo no RJ).

3. Interesses amorosos

Como toda comédia teen, O Diário da Princesa também tem muito clima de azaração. Temos um bom e velho triângulo amoroso entre Mia, Michael e Josh, e fórmula vocês já conhecem: Michael queria Mia que queria Josh que queria ele mesmo. E aí no final rola aquela frase cafonérrima (mas você chorou que eu sei) da Mia pro Michael:

Mas vamos dar um crédito ao filme. Apesar de seguir todos os moldes da indústria, ele fez uma coisa diferente pros padrões Disney: mostrou que querer alguém não é necessariamente relacionado a amor, mas sim a desejo.

Josh é estabelecido desde o começo como um cara vaidoso e egocêntrico com quem Mia não tem nada em comum, mas ela se imagina sendo esmagada por ele contra o armário e beijada de língua (escândalo). Em nenhum momento ela acha que o Josh vai ser o amor da sua vida, apesar de querer ter um primeiro beijo romântico com ele, e depois da desilusão ela não fica chorando pelos cantos porque, francamente, não era amor (era cilada), era só uma atração de adolescente.

Eu lembro de achar o Michael mega esquisito na época. E ele era mesmo. Em 2001, todos os galãs eram assim:

Ou você era loiro de cabelo comprido ou moreno de cabelo espetado. O Leo foi o primeiro a subverter e fazer os dois.

Daí de repente me aparece esse cidadão:

E ficou todo mundo pensando “oi?”.

Eu sei que ele parece qualquer pessoa andando na rua hoje em dia, mas vamos fazer uma forcinha e lembrar que tudo que era minimamente diferente era chocante em 2001. A aparência dele era super “alternas” não só pra gente como a gente, mas pra atores de cinema em geral. Isso em grande parte tem a ver com o fato de que o Robert Schwartzman não era ator, e sim músico (vocalista da banda Rooney, quando o indie estava começando a aparecer), e nunca mais fez nenhum filme depois do Diário. Tudo bem que a atuação dele é meio esquisita (pra não dizer péssima), mas querendo ou não quebrou uma longa lista de galãs loiros, de olhos azuis, perfeitos e sentimentais. O Michael era só um cara comum, meio quieto e desajeitado, o irmão da melhor amiga. Todo mundo conhece um desses.

O relacionamento do Michael e da Mia é leve e cheio de situações constrangedoras, como primeiros namoros geralmente são. Eles não falam sobre sentimentos e não fazem planos pro futuro. É só vontade e curiosidade. Por isso não tem a promessa de um “felizes para sempre”, que é absurdamente comum em histórias de amor adolescentes (a/c Malhação). Aliás quem viu O Diário da Princesa 2 sabe que (SPOILERS) Mia e Michael terminaram em paz e continuaram amigos, sem drama. Isso sim é final feliz.

4. Contexto social

Vamos combinar que a Princesa Mia estava arrasando no look H&M muito antes da Kate sair num primeiro date com o William. Além disso, as pessoas ao redor dela também estavam bem à frente do seu tempo. Nesse filme você não vai ver ninguém com profissões “comuns”, tipo médico, engenheiro, advogado. A mãe da Mia é artista plástica, o pai era príncipe, e a avó é rainha.

Os colegas dela também são super pra frentex. Nada de surpreendente considerando que eles estudavam na ESCOLA MAIS LEGAL DO MUNDO, onde a diretora era a Sandra Oh e tinha máquina de sorvete no pátio (perdeu só pra escola do The Fosters, em que a diretora é mãe de todos os alunos e a escola fica na praia).

Os únicos alunos não “diferentões” são a Lana, a cheerleader que fazia bullying com a Mia, e o Josh, o Backstreet Boy. Eles são a cara dos late 90s/early 2000s, mas todos os outros alunos (e até mesmo os professores) tem hobbies, gostos e personalidades mais modernas. A Lilly com certeza seria aquela amiga vlogueira que obriga você a dar refresh 40 vezes por dia nos vídeos dela pra dar mais alguns views, e o sonho dela é finalmente monetizar os vídeos no YouTube. Jeremiah seria o amigo desempregado que já fez curso de clown, de circo, de marcenaria, de xilofone, e agora está tentando a vida como mágico freelancer. E o Michael é o namorado hipster que só te leva pra jantar no lugar mais escondido e exclusivo de São Francisco, mas que tem fila pra entrar.

5. A modernização de tropes clássicos

Uma das cenas que eu acho mais legais no filme acontece quase no final, quando a Mia finalmente decidiu aceitar ser princesa e está tentando chegar no baile real antes da avó anunciar que ela abdicou ao trono, e o carro dela quebra na chuva. Nessa época não tinha Uber, e como a Mia era diferentona ela também não tinha celular, ainda que aqueles Nokias indestrutíveis fossem moda na época. Algumas cenas antes, Mia manda pro Michael uma pizza com a palavra “desculpa” escrita em M&Ms (não sei dizer se pizza de M&Ms já existia na época, mas taí mais uma coisa que o filme previu) e ele decide ir pro baile. Numa comédia romântica tradicional, o Michael seria o “Knight in shining armor” que encontraria a Mia no meio do caminho e a salvaria num cavalo branco, chegando à tempo no baile. Mas no Diário da Princesa, quem chega pra salvar o dia é o Joe, o motorista da limusine real, e uma das poucas pessoas que conhecia a Mia de verdade.

Então, Mia, quando você fala pro Michael que ele foi a única pessoa que te viu quando você era invisível, você está mentindo, porque o Joe também te viu. Ele é a figura paterna que ela nunca teve, provando que parentesco e sangue azul não significam nada.

O mais legal de tudo é que os interesses amorosos da Mia não guiam sua escolha de se tornar ou não princesa, e em nenhum momento a fazem pensar duas vezes sobre seu destino e uma possível mudança pra outro país. A felicidade de Mia em nenhum momento foi vinculada ao desfecho das suas relações amorosas, e seu final feliz não foi por ter ficado com Michael, e sim por ter feito a escolha certa não só para a sociedade, mas para si mesma. Ficar com o Michael foi como uma recompensa, algo que é muito comum para protagonistas homens em filmes de ação e aventura, mas não tanto para as mulheres do cinema.

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