Marília Mendonça é a artista da década

Bia Crespo
7 min readDec 13, 2019

E eu posso provar.

Vários portais e revistas tem promovido seus artistas da década conforme 2020 vem chegando — os britânicos apontaram Ed Sheeran; já os americanos coroaram Taylor Swift — então nada mais justo do que pensar quem detém esse posto no Brasil. Nos títulos citados acima, o critério usado foi exclusivamente comercial, de acordo com os hits desses cantores que chegaram às paradas, além do tempo em que ficaram no topo.

Como o Brasil é um país complexo, acredito que tais critérios analisados isoladamente não conseguiriam abranger o impacto de ume cantore na nossa cultura. O Brasil é foda. Nossa arte é incrível, nosso cinema é poderoso e contestador, mas a nossa música tem um poder incomparável: ela está em todo lugar. Sabe quem mais esteve, literalmente, em todos os cantos esse ano? Marília Mendonça.

Pausa para uma digressão pessoal sobre o dia em que eu ouvi Marília pela primeira vez: em 2015, no auge do inverno canadense, e eu ouvia Nativa FM online enquanto cozinhava, como de costume. Sempre gostei de sertanejo, mas esse hábito vinha mais de saudades de casa do que da apreciação pela qualidade musical do gênero na época. Um atrás do outro, os cantores e as duplas masculinas enfileiravam hit atrás de hit na estação — todos sobre pegar mulheres, ser largado, levar chifre, trair, enganar mulheres, ou ser muito gostoso e irresistível na balada. De repente, uma estrondosa voz feminina ecoou pela sala. Achei que fosse Roberta Miranda pelo timbre, mas alguma coisa ali estava moderna demais. Esperei a música acabar para pegar o nome da cantora e fui procurar no YouTube a cara dela. Me deparei com aquela mulher de 19 anos, totalmente fora dos padrões, tomando um whisky enquanto cantava Motel com Maiara e Maraisa. A potência daquilo me acertou como um soco. E nesse momento eu sabia que alguma coisa estava começando no Brasil — eu precisava voltar. (No fim voltei por alguns outros motivos, mas, em prol do melodrama, podemos afirmar que voltei para o Brasil por causa da Marília Mendonça.)

Vamos aos números: Marília é a segunda cantora mais ouvida da década tanto no Spotify quanto no YouTube brasileiros. No TOP 10 das músicas mais tocadas da década, ela é a única mulher solo da lista.

Pra entender a importância desses números, é preciso ver como essa lista costumava ser em 2014, um ano antes de Marília iniciar sua carreira como cantora:

1) Gusttavo Lima — Que mal te fiz

2) Marcos & Belutti — Domingo de manhã

3) Zezé Di Camargo & Luciano — Flores em vida

4) Jads & Jadson — Colo

5) Henrique e Juliano — Cuida bem dela

6) Victor e Léo — Tudo com você

7) Jorge & Mateus — Nocaute

8) Leonardo — Liga lá em casa

9) Henrique e Julian — Até você voltar

10) Fernando & Sorocaba — Mármore

Fonte: Guia da Semana

Ludmilla e Anitta, que já estavam em atividade, aparecem em 24º e 25º lugares, respectivamente. Esses números são das estações de rádio, já que o Spotify era praticamente inexistente no Brasil.

Mesmo sem ser conhecida pelo público na época, Marília já estava nessa lista. A música Cuida bem dela, 5ª mais tocada do ano, foi composta por ela — que, na época, tinha apenas 17 anos. Marília era sinônimo de sucesso nos bastidores da indústria onde trabalhou desde os 12 anos para ajudar na renda familiar. Antes disso, cantava na igreja.

Dona de uma voz potente e de letras imbatíveis, por que ela mesma não cantava o que compunha? Vocês viram a lista. Não existiam mulheres cantoras de sertanejo. Não existiam mulheres no TOP 10. Mulheres eram apenas temas de músicas — a crença da indústria era que ninguém queria ouvir o lado delas. Ledo engano.

Junto com suas amigas Maiara e Maraisa, que estavam há anos tentando emplacar uma carreira no sertanejo, Marília começou um movimento popular feminista sem perceber. E sem aceitar o rótulo de feminista a princípio, como chegou a dizer em entrevistas. Mas que outro título pode se dar a alguém que enfrentou uma das indústrias mais machistas do país para transmitir mensagens de empoderamento, auto-confiança e amor próprio a milhões de mulheres? (PS: depois ela mudou de ideia e aceitou ❤)

O fenômeno que essas artistas se tornaram em um ano mostra a carência de representação que mulheres tinham no sertanejo. Cansadas de serem retratadas como vilãs da história dos cantores, as mulheres invadiram os shows para dançar, rir e chorar com suas ídolas. No fim de 2016, pouco mais de um ano depois dos lançamentos dos primeiros singles de Marília Mendonça e Maiara e Maraisa, a lista de mais tocadas estava assim:

1. Zé Neto & Cristiano — “Seu Polícia” (Ao Vivo)

2. Marília Mendonça — “Infiel” (Ao Vivo)

3. Eduardo Costa — “Pronto Falei”

4. Marcos & Belutti part. Fernando Zor — “Romântico Anônimo”

5. Maiara & Maraisa — “Medo Bobo”

6. Victor & Leo — “Vai Me Perdoando”

7. Jorge & Mateus — “Sosseguei”

8. Naiara Azevedo part. Maiara & Maraisa — “50 Reais” (Ao Vivo)

9. Henrique & Diego — “Esqueci Você” (Ao Vivo)

Fonte: Tenho mais discos que amigos!

De zero mulheres, passamos para três. E essas 3 mulheres eram estreantes. Os demais cantores já vinham construindo suas carreiras desde o começo da década.

Não são só os números que impressionam. O impacto social das letras de Marília pode ser visto nas conversas de ônibus, nas discussões na fila do banco, nas amigas que comentam a vida numa mesa de bar. O que parecia antes impensável — a mulher se colocar em primeiro lugar — está acontecendo por todo o Brasil, principalmente entre as classes mais baixas e nas cidades mais distantes do eixo Rio-São Paulo. Essa mensagem não é destinada à elite intelectual que está familiarizada com o termo “feminista”, mas sim às mulheres que não tem acesso a essas informações e chegam a repudiar essa palavra. Marília não doutrina — ela cria empatia. E da empatia nasce o sentimento de que não estamos sozinhas. De que precisamos nos ajudar. Sororidade.

Para de insistir, chega de se iludir

O que cê tá passando, eu já passei e eu sobrevivi

Se ele não te quer, supera

Se ele não te quer, supera

Ele tá fazendo de tapete o seu coração

Promete pra mim que dessa vez você vai falar não

De mulher pra mulher, supera

De mulher pra mulher, supera

Supera (Todos os cantos, 2019)

Sua família é tão bonita

Eu nunca tive isso na vida

E se eu continuar assim

Eu sei que não vou ter

Ele te ama de verdade

E a culpa foi minha

Minha responsabilidade eu vou resolver

Não quero atrapalhar você

E o preço que eu pago

É nunca ser amada de verdade

Ninguém me respeitar nessa cidade

Amante não tem lar

Amante nunca vai casar

Amante não tem lar (Realidade, 2017)

Se quem tava comigo era ele, a culpa é dele

Quem fez essa bagunça na nossa amizade é ele

Eu não vou deixar de ser sua amiga por causa de um qualquer

Que não respeita uma mulher

A culpa é dele (Agora é que são elas 2, 2018)

Eu nunca tive lei

E nem horário pra sair nem pra voltar

Se lembra que eu mandei você acostumar?

To te mandando embora, melhor sair agora

Não vem me controlar

Folgado

Maldita hora que eu chamei você de namorado

Imagina se a gente tivesse casado

Deus me livre da latada que eu ia entrar

Me dá um arrepio só de imaginar

Folgado (Marília Mendonça, 2015)

Eu queria dizer pra ela

Que ela é nova e inteligente

Tem tudo pela frente

Merece ser feliz como a gente

Mas ela tá fazendo diferente

(…)

Não tô jogando na sua cara, não

Não quero confusão

Hoje eu tô tão na paz

Por que não faz o mesmo que a gente faz?

Gente feliz não atrapalha os outros casais

Então se ame mais

Não é culpa minha

Se ele não quer mais

Se ame mais (Realidade, 2017)

Claro que nem tudo são flores. Marília respeita as convenções do gênero e tem diversas músicas sobre traição, dor de corno, vingança e outros clássicos do sertanejo. Entretanto, a simples existência de músicas que falam sobre amizade feminina, ausência de rivalidade entre ex e atual e tantas outras situações feministas mostra que ela revolucionou o sertanejo.

Além da mensagem positiva de suas músicas, ela abriu e continua abrindo portas para outras cantoras sem jamais estimular competição entre as novas divas do sertanejo. Ela é sem dúvida uma das cantoras que mais fez participações em singles de outros cantores, sertanejos ou não, homens ou mulheres, de diversas gravadoras. Seu legado para nossa sociedade já é inestimável, mesmo com apenas cinco anos de carreira como cantora. Que a década de 2020 nos traga muito mais de Marília e seus frutos.

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